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Recensões

Sobre a urgência de um novo sindicalismo

São José Almeida
p. 202-205
Referência(s):

Elísio Estanque e Hermes Augusto Costa (orgs.) (2011), O sindicalismo português e a nova questão social – Crise ou renovação? Coimbra: Almedina/CES, 182 pp.

Texto integral

1A leitura do livro O sindicalismo português e a nova questão social – Crise ou renovação?, organizado por Elísio Estanque e Hermes Augusto Costa e editado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e pelas Edições Almedina, alerta‑nos para a permanência da volatilidade do real, de como as noções de tempo e espaço mudaram. É quase já do senso comum a noção de como o tempo histórico se acelerou e como a noção de espaço implodiu. Não que não haja espaço, claro que há, mas a territorialização já não é relevante para a organização da vida. E a própria aceleração do tempo volatiliza a organização da vida.

2É do senso comum também que a vida é a gestão do tempo e do espaço da existência de cada indivíduo. É nessa gestão do tempo de vida das pessoas, através do uso da sua capacidade racional, que consiste aquilo que se convencionou chamar civilização humana, história humana, sociedade humana. E a capacidade de racionalizar, de organizar, de conceber, de construir civilização é aquilo que se chama trabalho. Ora quando o tempo e o espaço se volatilizam, a organização do trabalho, tal como a conhecíamos, desestrutura‑se.

3Perante a aceleração do tempo histórico e pelo ter‑se tornado desnecessário dominar o espaço, essa organização da sociedade e da construção de cultura, de civilização, muda radicalmente e a uma velocidade assombrosa, que consegue fazer várias vidas serem vividas numa só vida. Ou seja, a geração dos meus pais viveu uma Guerra Mundial, em que a recuperação das Forças dos Aliados teve como um dos momentos‑chave a invasão da Normandia. As operações de guerra que levaram à vitória dos Aliados e que envolveram esta operação de desembarque e de transporte de tropas prolongaram‑se durante meses e anos até atingir o coração do nazismo em Berlim. Mas na geração dos meus pais, apenas quem ia ao cinema visualizou e reteve as imagens desta e de outras operações militares importantes através das filmagens da propaganda de Guerra. Já eu vi pela televisão – e estava numa sala de espera de um consultório médico a olhar para uma televisão ligada à BBC nesse momento, por isso vi mesmo – o segundo avião a embater nas Twin Towers.

4Quando os meus pais tiveram a sua primeira máquina de lavar roupa de tambor e não de manivela e ela avariava, quem ia arranjá‑la era um senhor electricista que trabalhava numa loja, de onde vinha lá a casa também um senhor canalizador; o primeiro andava sempre de fato‑de‑macaco azul, o segundo de fato‑de‑macaco cinzento. Quando a minha máquina de lavar roupa que é Bosch – nasci a ouvir dizer que “O que é Bosch é bom” pelo que sou a prova de que a publicidade é uma forma eficaz de propaganda –, mas quando a minha máquina avariou, liguei para um número de assistência e atendeu‑me um senhor em Madrid, de um call center da Bosch na Península Ibérica, que mandou um técnico português a minha casa. O mesmo se passou com a minha caldeira da Vulcano, que quando comprei já sabia que não era mais uma marca portuguesa, pois tinha sido comprada pela Bosch.

5Ora, quando os conceitos de espaço/tempo sofrem uma mudança radical, como a que vivemos, como é que vamos passar a gerir as nossas vidas? Como vamos passar a gerir a nossa forma útil e compensadora para a nossa sobrevivência de nos organizarmos com os outros em sociedade? Como é que vamos, em suma, reorganizar o desempenho da nossa capacidade de construir cultura humana, a nossa capacidade de produzir, o nosso trabalho?

6E é sobre isto que este livro levanta questões pertinentes e importantes com contributos de sindicalistas e de estudiosos do trabalho, conseguindo uma rara, em Portugal, junção entre teoria e prática, que é tão adversa à academia portuguesa e às organizações sociais, que insistem por de mais em estar de costas voltadas, o que é prejudicial para elas, mas também para a sociedade portuguesa.

7Como responder à desestruturação das formas clássicas de representatividade social, quando as tradicionais formas de organizar a representatividade implodiram em microsssegundos históricos, aos nossos olhos, nas nossas vidas, com a volatilização dos conceitos de espaço e de tempo, e virando‑nos de cabeça para baixo, deixando‑nos perdidos, atordoados, sem referências, sem rumo e sem objectivos?

8Como organizarmos a gestão do tempo e do espaço das nossas vidas neste novo mundo acelerado e onde o imediatismo proporcionado pela internet e pelos telefones portáteis permite que sejamos massificados, condicionados, comandados, escravizados em novos moldes? Sem espaço próprio, sem privacidade, sem individualidade e, consequentemente, sem capacidade de organização para reagir? Que fazer perante a falência, a implosão das formas de representação tradicionais nas sociedades democráticas ocidentais do século xx – embora não só nessas – como os partidos políticos e os sindicatos?

9É a estas perguntas que este livro procura responder. E partindo ainda da reflexão que a sua leitura suscitou, refiro alguns aspectos.

10Parece incontornável a reorganização das formas de representatividade, como os partidos e os sindicatos, em termos de resposta aos novos tempo de volatilidade e massificação. Neste domínio a importância da organização sindical é clara e advém apenas de uma perspectiva histórica. A melhoria dos patamares de vida das sociedades humanas nos séculos xixxx têm como base a luta dos movimentos operários e dos movimentos dos trabalhadores e esta luta é a luta sindical (chame‑se ou não assim a cada momento). E mesmo a representação política específica em partidos dos interesses dos trabalhadores nasceu muitas vezes ou foi influenciada pela luta dos movimentos operários e de trabalhadores.

11Uma melhoria da qualidade de vida que inclui naturalmente os direitos que agora são apontados pelos detentores do poder como excessivos e extravagantes e que são retirados perante uma sociedade onde as estruturas de representação dos trabalhadores estão sem capacidade de resposta e de luta. Até porque a luta obriga a que se adaptem à nova realidade. É essa perspectiva histórica que me leva a pensar que não só as estruturas de representação dos trabalhadores (chamem‑se sindicatos ou outra coisa qualquer) são necessárias e obrigatórias, como também não podem esquecer a dimensão política e a dimensão social da luta que têm por obrigação desempenhar.

12Faz parte do interesse das elites que dominam e possuem este novo mundo difundir a ideia, implantá‑la na cabeça de todos e de cada um, que a política é para os políticos, que a política não presta, que a política é corrupta. Em suma, despolitizar a política. Uma missão que cumprem através das novas armas que massificação: a propaganda da comunicação social e da publicidade.

13Mas, ao contrário do que os donos do mundo e as suas novas aristocracias proclamam, a política faz parte da vida, a história prova‑o. Logo, a política tem que fazer parte do movimento sindical. A política e a ideologia, na sua diversidade. E os sindicalistas e os trabalhadores não têm que ter dela medo, nem vergonha.

14Não quero passar‑me por radical. Mas faço apenas uma pergunta: o sindicalismo asséptico, o sindicalismo despolitizado, o sindicalismo do diálogo, o sindicalismo da concertação social, além do privilégio que dá às aristocracias sindicais de se sentarem à mesa das aristocracias patronais, para partilhar os despojos do dia, que meios tem de responder à voracidade com que o novo mundo destrói os laços sociais?

15Não estou a fazer nenhuma defesa demagógica de novas formas de ludismo ou de revolta. Pelo contrário. É para evitar que a implosão do espaço e do tempo, que vivemos, rebente nas nossas caras, em revoltas e motins sem organização e sem objectivos, que penso que é preciso que as formas de representação dos trabalhadores se organizem. Que voltem a reorientar a bússola e dar um norte às pessoas.

16E isso – de acordo com convicções que saíram reforçadas da leitura deste livro –, passa claramente pela organização política dos sindicatos, pela assunção do debate ideológico, mas também pela recuperação da dimensão de movimento social que a luta laboral já desempenhou noutras épocas. Chega de ficar presos a guerras e disputas e desconfianças do passado, que não trazem nada de positivo à sociedade portuguesa de hoje, antes podem ser responsáveis por paralisarem a capacidade de resposta sindical aos desafios de hoje. Assim como têm impedido a cooperação partidária à esquerda.

17Falando de arcaísmos bloqueadores da acção, é também tempo de democratizar métodos de organização. Para quando a limitação de mandatos nas direcções dos sindicatos e das centrais sindicais? E, já agora, para quando a generalização do recurso a referendos internos?

18Quando me refiro à necessidade do sindicalismo recuperar a dimensão política e de movimento social, refiro‑me claramente à necessidade de o movimento sindical ser capaz de se organizar e de cooperar ou englobar ou fundir‑se – sei lá eu a forma ou as formas que isso tomará – com os movimentos de precários. E refiro‑me quer aos movimentos organizados, como os FERVE – Fartos Destes Recibos Verdes, os Precários Inflexíveis, as Intermitentes do Espectáculo, a ABIC – Associação dos Bolseiros de Investigação Científica, como dos mais recentes e menos organizados, como o M12M, que nasceu, como o nome diz, do 12 de Março.

19É preciso os sindicatos darem o salto e terem presente que a força do movimento operário foi sempre a da unidade dos diversos. É preciso os sindicatos terem consciência de que acabarão sozinhos, a receberem as esmolas da concertação social, se apostam apenas na defesa dos direitos dos trabalhos dos que têm direitos e não também na defesa de conquista de direitos pelos que não têm. Até quando vai durar o salário mínimo nacional? Quando cairá na mesa da negociação a “necessidade patriótica”, de acordo com os interesses das aristocracias do poder, de acabar com esse privilégios, essa “gordura” que o Estado garante?

20Se os sindicatos ficam numa atitude socialmente defensiva e não socialmente agressiva, se não recuperam a sua dimensão política e social, se continuam a raciocinar em termos de tempo de trabalho de oito horas 5 dias na semana e no espaço da fábrica, do escritório e da loja. A maioria dos que trabalham, a maioria dos explorados, a maioria dos espoliados, a maioria das novas “vítimas da fome” e dos novos “famélicos da terra” não se sentirá representada.

21A realidade laboral hoje também é – e é‑o cada vez mais – a do teletrabalho e dos call centers, mesmo para dirigir o trabalho a que se chama ainda hoje trabalho operário. E os sindicatos têm que se reinventar para continuarem a cumprir o seu papel histórico. Uma reorganização que terá de ter em conta a aceleração do conceito de tempo e a implosão do espaço. Daí que o sindicalismo tenha de abrir‑se a novas formas de organização, em que penso que a internet terá um papel fundamental na criação de novas formas de organização em rede – como, aliás, é referido por alguns dos autores do livro.

22A figura do delegado sindical na redacção do jornal onde trabalho, por exemplo, desapareceu. Isso não quer dizer que não haja Sindicato de Jornalistas e que os jornalistas do Público não possam ser e não sejam sindicalizados. Podem sê‑lo e inscrever‑se directamente sem a mediação do delegado. Mas têm de poder sê‑lo também quando trabalham a contrato a prazo. Todos os trabalhadores – efectivos, precários e desempregados – têm de poder relacionar‑se e vincular‑se ao seu sindicato sem ter de passar pelo patrão, sem ter de declarar que são sindicalizados à empresa e autorizar que dos seus salários seja entregue a sua quota ao sindicato. Por muito prático que este sistema seja para o financiamento dos sindicatos – porque garante as transferências mensais – não é um método viável e compatível com a realidade laboral de hoje em dia.

23E é urgente reinventar as relações entre sindicatos e trabalhadores e adaptá‑las à mudança que trouxe a aceleração do tempo e a desnecessidade de territorialização. Quando um jornalista pode fazer o seu trabalho em casa, quando uma fábrica de sapatos ou de tapetes paga à peça a trabalhadores que os fazem em suas casas, quando uma fábrica de automóveis apenas monta componentes que são fabricados em outsourcing ou por outras fábricas da mesma multinacional na outra ponta do mundo, quando o mecânico da máquina Bosch vem a casa, no Estoril, saído de uma qualquer localidade da zona de Lisboa, por marcação feita através de um call center em Madrid. Quando todos estes trabalhadores são pagos à peça, ao dia, ao serviço. Cabe aos sindicatos também tentar reinventar a figura do delegado sindical e recriar as redes de ligação entre estas pessoas em novos moldes, de modo a que elas se sintam representadas. E o sejam de facto.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

São José Almeida, «Sobre a urgência de um novo sindicalismo»Revista Crítica de Ciências Sociais, 93 | 2011, 202-205.

Referência eletrónica

São José Almeida, «Sobre a urgência de um novo sindicalismo»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 93 | 2011, publicado a 01 outubro 2012, consultado a 28 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/rccs/1409; DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.1409

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Autor

São José Almeida

É jornalista do Público desde a sua fundação, em 1990. Especialista em política nacional, ao longo dos 20 anos de jornalismo acompanhou as instituições políticas e partidárias (foi repórter parlamentar entre 1995 e 2005) e também questões relacionadas com a defesa de direitos humanos, nomeadamente direitos das mulheres e dos homossexuais. É autora dos livros Homossexuais no Estado Novo (Sextante Editora, 2010) e Continuar a tentar pensar (Sextante Editora, 2011).
sao.jose.almeida@gmail.com

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