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Investigar o fenómeno dos sem‑abrigo. Em defesa de uma política ontológica declarada e preocupada*

Investigating Homelessness: In Defence of a Declared and Concerned Ontological Politics
Enquêter sur le phénomène des SDF. Pour une politique ontologique déclarée et engagée
João Aldeia
p. 133-154

Resumos

A quantificação e a individualização patológica são as duas tendências dominantes na investigação do fenómeno dos sem‑abrigo. Ao ganharem estatuto de quase‑exclusividade na pesquisa sobre o fenómeno, constituem‑se num regime de verdade e procedem a uma série de negações insustentáveis: negam que produzem as realidades que estudam, negam que outras realidades poderiam ser produzidas, deslegitimam posturas metodológicas alternativas, invisibilizam as relações de poder e dominação, obscurecendo a injustiça da vida na rua. Em alternativa a este regime de verdade, defendo a mobilização de uma política ontológica assumida e preocupada com o bem‑estar e a dignidade dos atores sem‑abrigo.

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Introdução

  • * Agradeço a Sílvia Portugal pela leitura atenta de várias versões deste texto e pelas suas sugestões (...)

1Há um regime de verdade dominante na investigação sobre o fenómeno dos sem‑abrigo. Ele compõe‑se de duas orientações distintas, mas complementares: a tendência para a quantificação e a individualização patológica do fenómeno. Este regime de verdade, como qualquer outro, é a materialização da presença de certas realidades produzidas pelo próprio processo de pesquisa, o que só pode ser feito à custa da produção ativa da invisibilidade de realidades alternativas (Foucault, 1991, 1994, 2006; Mol, 2002; Law, 2004; Santos, 2006, 2009). Contudo, o principal problema desta postura dominante não é o facto de criar ausências: elas são parte integrante do processo metodológico de fornecimento de sentido ao mundo. O que se revela problemático é (1) o processo pelo qual as invisibilidades são transformadas em negações, levando a que se encarem como impossibilidades todas as realidades que não estão presentes na prática metodológica dominante, reduzindo‑se o campo do possível ao que é feito existir; e (2) o facto das ausências particulares que este regime de verdade cria serem fundamentais para entender o fenómeno dos sem‑abrigo como algo que se caracteriza, acima de qualquer outra coisa, pela injustiça e pela dominação extrema. Enfatizando as “grandes tendências estatísticas” do fenómeno, este é abordado de modo superficial, não permitindo aceder à pluralidade de modos de pensar e agir que o caracterizam, deixando de fora da realidade produzida atores, espaços e interações fulcrais ao estudo da vida na rua. Remeter para causas individuais um fenómeno que ocorre por motivos estruturais contribui para naturalizar – in extremis, negar – os problemas dos mercados laboral e habitacional e da ação estatal e institucional do sector da “assistência”, servindo de suporte a um modo particular de culpabilizar as “vítimas” pela sua própria situação.

  • 1 No sentido de enactment, que deve ser distinguido de construction. Ambos os conceitos remetem para (...)

2A preocupação com o bem‑estar e dignidade de quem é “sem‑abrigo” não permite que os investigadores sejam coniventes com a reprodução e reforço deste regime de verdade. É essencial realizar um exercício político ontológico (Mol, 2002; Law, 2004) que permita produzir1 uma outra realidade do fenómeno dos sem‑abrigo. Uma política ontológica que dê conta da multiplicidade, complexidade e fluidez das diferentes características do fenómeno e que o faça acentuando a preocupação pela melhoria das condições de vida dos atores sem‑abrigo. Mas precisamos também de uma política ontológica que se assuma como tal explicitamente; que, ao contrário do regime de verdade dominante, que nega fazer escolhas sobre o que torna presente e ausente, explicite os motivos pelos quais certas presenças são preferíveis a outras, bem como dê abertamente conta do facto de criar ausências. Este exercício deve funcionar a dois tempos complementares. Em primeiro lugar, trata‑se do passo inicial de uma política ontológica preocupada e assumida: a rejeição de produzir como invisíveis a dominação e a injustiça caracterizadoras do fenómeno dos sem‑abrigo. Uma vez que só considerando esta injustiça e dominação é possível combatê‑las, o segundo movimento político ontológico prende‑se, necessariamente, com a produção coletiva de uma realidade mais justa, sem pessoas a viver na rua.

  • 2 Ao longo do texto, será mobilizada a distinção epistemológica basilar entre perspetivismo e constru (...)
  • 3 Torna‑se essencial mobilizar uma conceção ampla de método. Fazendo‑o, fica claro que qualquer postu (...)

3Começo o texto refletindo sobre o regime de verdade dominante, abordando as suas duas dimensões referidas. O meu principal argumento não é o de que estas posturas de investigação correspondam a perspetivas erradas. Tal conceptualização basear‑se‑ia na ideia de que existe uma realidade do fenómeno dos sem‑abrigo que é exterior às práticas metodológicas mobilizadas para o estudar. Não considero que uma tal realidade exterior exista, pelo que a questão em discussão não é uma de perspetiva.2 Ela vai além disto: mais do que perspetivas, a quantificação e a individualização patológica são métodos errados3 para estudar e produzir um fenómeno dos sem‑abrigo que se caracteriza pela dominação e pela injustiça. Eles tornam presentes partes da realidade do fenómeno que não contribuem para o compreender nem para o solucionar (os consumos de drogas e de álcool e as doenças mentais) e tornam ausentes as realidades fundamentais da vida na rua (os mercados laborais e habitacionais, o papel do Estado, as estratégias de sobrevivência de quem vive na rua, o desrespeito, a estigmatização, a desqualificação social, a pobreza). Como alternativa, defendo uma postura metodológica que se assuma explicitamente como um processo de produção de realidade, de criação de presenças e de ausências, que declare os motivos pelos quais certas presenças são mais desejadas ou necessárias do que outras, que esclareça que invisibilizações cria, e que faça tudo isto partindo de uma preocupação fruto da indignação sentida pelo investigador perante a dominação e a injustiça que caracterizam o fenómeno dos sem‑abrigo.

“Quantos (e quem) são os sem‑abrigo?”

  • 4 As discussões sobre as definições de “sem‑abrigo” são diversas. Brousse (2005), Jacobs, Kemeny e Ma (...)

4Não existe uma definição do fenómeno dos sem‑abrigo consensual no espaço, no tempo e entre instituições e investigadores.4 A única coisa que todas as definições parecem ter em comum é o facto de serem baseadas nas carências dos indivíduos que vivem na rua: a falta de casa, de laços sociais, de dinheiro, de saúde física e/ou mental, etc. Uma definição consensual não só não existe como não pode existir dado que os atores sem‑abrigo não constituem uma “categoria à parte” do resto da sociedade mas inserem‑se num continuum de precariedade – em grande medida, habitacional – juntamente com a população domiciliada. A categoria “sem‑abrigo” só existe na medida em que é criada pelas práticas metodológicas mobilizadas por investigadores, profissionais que trabalham com sujeitos que vivem na rua e “fazedores de políticas” sobre o fenómeno.

5Estes atores consideram a amplitude conceptual da definição uma questão fundamental. Esta oscila entre definições bastante restritas – ser “sem‑abrigo” stricto sensu; dormir literalmente na rua ou noutro espaço “público” não destinado a essa atividade – e outras de enorme amplitude, em que ser “sem‑abrigo” se liga e confunde com muitas outras situações de precariedade e vulnerabilidade, nomeadamente, de vulnerabilidade face à habitação (Jacobs, Kemeny e Manzi, 1999; Brousse, 2005; Gaboriau e Terrolle, 2009).

  • 5 Acerca das questões relativas aos modos de contabilização do agregado “sem‑abrigo”, cf. Brousse (20 (...)

6Definições com diferente amplitude produzirão sempre contabilizações distintas do número de indivíduos a viver na rua. De forma tendencial, as instituições não‑governamentais recorrem a definições mais amplas e as estatais a definições mais restritas, de onde decorrem “populações de sem‑abrigo” maiores ou menores, respetivamente. Esta diferença de contabilização provém ainda – de forma complementar – do modo como os “sem‑abrigo” são contados. De um ponto de vista estatístico, é possível “medir” esta “população” em stock – considerando o número de sujeitos que correspondiam a uma qualquer definição de “sem‑abrigo” num ponto particular do tempo – ou em fluxo – atendendo ao número de indivíduos que corresponderam a uma qualquer definição de “sem‑abrigo” ao longo de um período de tempo (por hipótese, um ano).5 É habitual que os governos prefiram “medir a população sem‑abrigo” como um stock, dado que é sempre menor do que em fluxo, e que as instituições que não dependem diretamente do governo optem por medições em fluxo. As ONGs que trabalham com pessoas sem‑abrigo têm interesse claro em justificar a sua existência e continuidade institucional, e, para tal, necessitam de financiamentos. Uma definição ampla de “sem‑abrigo” que suporte uma medição em fluxo fornecerá uma contabilização estatística do número de “sem‑abrigo” sempre bastante superior a uma medição em stock que recorra a uma definição restrita. Se há dados estatísticos que permitam afirmar que “há muitos indivíduos em situação de sem‑abrigo”, então, será necessário perpetuar as instituições que com eles lidam. Pelo contrário, é do interesse dos governos apresentar publicamente um número relativamente reduzido de indivíduos sem‑abrigo, de modo a subvalorizar o problema. Para mais, uma medição em fluxo apresentará sempre um maior número de indivíduos que se encontrem em situação de sem‑abrigo de forma “temporária”, i.e., que não permaneçam na rua durante longos períodos de tempo, enquanto uma quantificação de quem vive na rua como stock sobrerrepresentará o número de “sem‑abrigo crónicos”, i.e., os indivíduos que se encontram em situação de sem‑abrigo durante vários anos.

7A multiplicidade de formas de contabilização tornam a quantificação, no mínimo, problemática, se não mesmo impossível. Mas algumas questões adicionais de dificuldade prática devem ser mencionadas. O facto de vários indivíduos sem‑abrigo não serem visualmente identificáveis como tal (Gaboriau, 2004: 115‑116; Damon, 2008: 3; Gaboriau e Terrolle, 2009; Rullac, 2012) ou a dificuldade de acesso de muitos dos locais de pernoita, escolhidos por motivos de privacidade e proteção, muitos deles, espaços ao lado dos quais é possível passar sem nos apercebermos de que um ser humano dorme a poucos metros (Pichon, 1996, 2002; Gaboriau, 2004: 115‑116) tornam difícil aceitar que uma contabilização representativa da “população sem‑abrigo” seja alcançável. A hipótese da realização do inquérito com a mediação das instituições “assistencialistas” que trabalham com quem vive na rua também não contribui para a obtenção de dados que possam ser interpretados como representativos, pelo menos não como representativos da população a que o estudo se reportava intencionalmente. Vários indivíduos sem‑abrigo rejeitam veementemente o contacto com estas instituições, não pernoitando nem comendo nelas (Snow e Anderson, 1993; Pichon, 1996, 2002; Gaboriau, 2004; Damon, 2008: 228‑229; Rullac, 2012; Gowan, 2010). Por este motivo, não podem ser encontrados nos espaços institucionais e, no caso de vários sujeitos, nenhuma instituição sabe indicar os seus locais de pernoita. Estes indivíduos não figurarão em nenhum estudo estatístico dito “representativo da população sem‑abrigo”, independentemente do método de recolha de dados escolhido. Em última análise, o contacto institucional não serve para delimitar uma qualquer “população sem‑abrigo” mas apenas para criar uma distinção conceptual (intencional ou não) entre “domiciliados não precários” e “indivíduos utilizadores de serviços”.

8É impossível um investigador salvaguardar‑se destas questões recorrendo a um procedimento amostral “representativo” que lhe permita ignorar estes indivíduos de acesso impossível: dado que não é possível contar estes sujeitos, não podemos saber quantos são; logo, como se pode partir do princípio de que são residuais para um levantamento estatístico desta população?

9Em suma, as únicas populações acerca das quais se podem produzir dados quantitativos são a dos “sem‑abrigo identificáveis” na rua ou nas instituições (independentemente da definição utilizada) e a dos “utilizadores de serviços” (Gaboriau, 2004; Gaboriau e Terrolle, 2009). Mas estudos realizados como sendo referente a indivíduos sem‑abrigo e que são recorrentemente utilizados como “representativos” dessa população, apresentam deste modo a característica perversa de serem referentes a outra população. Como afirmam Gaboriau e Terrolle,

  • 6 Todas as citações em língua que não o português foram por mim traduzidas.

resumidamente, o inquérito é realizável. Ele foi já realizado. Ele será efetuado hoje com a garantia de estatísticos competentes e especialistas. Ele permitirá obter créditos financeiros substanciais. Ele fornecerá a ilusão do quantificável e do “conhecido” – delimitar melhor a “quantidade” permitirá julgar‑se mestre da situação. O aparente rigor servirá de álibi para esta ou aquela causa. Mas ele fornecerá um número que não corresponderá à população das pessoas sem‑abrigo (2009: 15).6

  • 7 A título exemplificativo, é com esta reduzida segurança que devemos olhar para os dados que nos diz (...)

10Estes problemas levam a que não existam dados estatísticos fiáveis sobre o fenómeno dos sem‑abrigo (Blau, 1992: 15‑30; Hopper, 1997; Gaboriau, 2004; Zeneidi‑Henry, 2002: 38‑49; Damon, 2008: 139‑144). Dadas estas enormes dificuldades de contabilização, podemos mesmo interrogar‑nos acerca da validade de qualquer produção estatística futura sobre o problema. Mesmo que os dados produzidos sobre o fenómeno fossem fiáveis, iriam eles ajudar‑nos a entender as condições de vida de quem vive na rua? Visto que a sua fiabilidade é diminuta ou inexistente e que, mesmo que não fosse este o caso, uma quantificação do número de pessoas que vivem na rua não serviria para entender como elas vivem, é justo afirmar que “o número desses sem‑abrigo não nos ajuda a conhecer melhor nem a perceber a realidade do seu laço à sociedade” (Guibert‑Lassalle, 2006: 46). Assim sendo, é com uma segurança diminuta que devemos olhar para quaisquer contabilizações do número de indivíduos em situação de sem‑abrigo – oficial, institucional ou academicamente avançadas –, independentemente das definições ou procedimentos estatísticos mobilizados.7 A única coisa que sabemos ao certo sobre o fenómeno é que há um número demasiadamente elevado de indivíduos a viver na rua. Não sabemos isto por eles serem 500 ou 5000, mas sim porque, como afirmou Machado Pais, “não me importo quanto são [os indivíduos sem‑abrigo] – os poucos que sejam são muitos” (2006: 38).

11Mais do que ser importante para estudar o fenómeno, definir o que significa ser “sem‑abrigo” é fulcral para que o fenómeno possa ser quantificado estatisticamente, servindo essa contabilização de suporte às ações políticas. A forma como se define quem é “sem‑abrigo” é um mecanismo de poder que classifica determinados indivíduos que se encontram numa posição social específica, reforçando um lugar estrutural dominado (Gaboriau, 2004: 113‑115). Dito de outra forma, como foi referido, a prática metodológica de definir uma “população sem‑abrigo” é um meio de criar os “sem‑abrigo” como categoria. Esta categoria será sempre desqualificada por várias formas – quanto mais não seja pelo facto de assentar nas carências dos sujeitos – e será dessa desqualificação que as instituições que trabalham com indivíduos sem‑abrigo retirarão a justificação para intervirem sobre quem vive na rua de uma forma que nega capacidade de ação e reflexividade a estas pessoas. A definição de “sem‑abrigo” tem, portanto, aspetos políticos que devem ser considerados (Hopper, 1997; Zeneidi‑Henry, 2002: 16‑50; Gaboriau, 2004; Damon, 2008: 2‑7, 129‑148; Rullac, 2012). Através da categorização, os indivíduos sem‑abrigo são representados, de modo tendencial, como um “grupo homogéneo”, negando‑se a enorme diversidade de situações, comportamentos, biografias e mundividências entre as pessoas que vivem na rua. Esta homogeneização facilita o desenvolvimento de políticas públicas dado que estas passam a ser pensadas com um “objeto único”. Uma vez que se ignora a real heterogeneidade empírica do fenómeno dos sem‑abrigo, as políticas serão dirigidas a um sujeito abstrato produzido como real e não aos indivíduos. Deste modo, este tratamento político do fenómeno resultará sempre numa desadequação entre o alvo das políticas e os sujeitos sobre quem elas são aplicadas.

12Como referi no início da secção, há uma continuidade total entre as situações de dominação, pobreza e precariedade (habitacional ou outra) experienciadas por atores “com” e “sem” abrigo. Se não há uma divisão simples entre “com” e “sem casa”, então, não é possível definir e contabilizar estatisticamente uma “população sem‑abrigo” (Gaboriau, 2004; Gaboriau e Terrolle, 2009). Assim sendo, uma definição do fenómeno dos sem‑abrigo tem baixa utilidade sociológica. Não definir o fenómeno não dificulta o seu estudo; pelo contrário, revaloriza a empiria, que passa a ser encarada como a única fonte válida para determinar se os indivíduos com os quais o investigador interage podem ou não ser considerados “sem‑abrigo”. Qualquer definição, mais ampla ou mais restrita, constituirá sempre um exercício de compartimentação dicotómica da realidade e esta deve ser evitada: é precisamente ao olhar para a interação entre “sem” e “com abrigo” que é possível produzir um trabalho sociologicamente relevante.

13Adicionalmente, uma definição assente “no que falta a estes sujeitos” tem o efeito imediato de obscurecer “o que eles têm”. O que não têm pode ser muito, pode mesmo ser devastador na sua escassez – escassez essa que está sempre presente no seu quotidiano –, mas tal constatação não pode levar a que se ignore o que possuem: representações do mundo e de si mesmos, desejos, conhecimentos, capacidades, valores, sentimentos. A questão colocada por Gaboriau e Terrolle é premente: “não poderíamos também falar de outro modo dos miseráveis, em função do que eles pensam, com o seu olhar sobre a vida e a nossa sociedade?” (2007: 29). A investigação sobre o fenómeno dos sem‑abrigo tem de olhar quer para o que falta aos indivíduos quer para o que eles possuem; tem de reconhecer a voz de quem vive na miséria que é a vida na rua, sem contudo ignorar que essa miséria é real e constrange. O discurso académico‑científico sobre o fenómeno tem de ser construído com quem vive na rua, tendo em conta o modo como estas pessoas veem a sua situação.

Individualização patológica

14A individualização patológica do fenómeno dos sem‑abrigo apresenta‑se como a outra postura metodológica dominante, muitas vezes, complementar da quantificação. Dois registos ideal‑típicos de individualização patológica existem: (1) a que deriva do modelo médico e (2) a que remete para a “amoralidade” dos sujeitos sem‑abrigo, representados como atores que rejeitam a normatividade domiciliada do resto da sociedade. Sociohistoricamente, o segundo registo foi dominante até ao início do século xx, enfatizando a culpabilização dos indivíduos sem‑abrigo pela própria situação, centrando‑se na “amoralidade, preguiça e (eventual) periculosidade” destes sujeitos. Com o período de forte regulação estatal e relativa prosperidade económica que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, passam a ser enfatizadas as dimensões estruturais da pobreza, observando‑se os efeitos que dirigiam determinados grupos e sujeitos para situações dominadas (Castel, 1996, 2009; Gowan, 2010).

15Desde a década de 1980, o modelo médico impôs‑se progressivamente como o motor orientador de definições, representações e ações da sociedade domiciliada face ao fenómeno dos sem‑abrigo e às pessoas que vivem na rua, sendo a postura oficial das instituições “assistencialistas” e tendo carácter dominante na investigação académica‑científica. Este modelo concebe o fenómeno como um conjunto de casos individuais, percebendo o facto de as pessoas viverem na rua como sintoma de distúrbios ou desordens de cada sujeito (Blau, 1992; Lyon‑Callo, 2008; Gowan, 2010). Assim sendo, o que esta perspetiva afirma ser necessário é a identificação e tratamento de problemas individuais. Medicamente, “o fenómeno dos sem‑abrigo não [é] o resultado de criminalidade ou de injustiça social […] mas um sintoma – de dependência, síndrome de stress pós‑traumático e outras doenças” (Gowan, 2010: xviii). Assim, o modelo médico afasta‑se típica‑idealmente do registo “(a)moralizante” mas contribui tanto quanto este para a invisibilização ativa das dimensões sistémicas do fenómeno dos sem‑abrigo (Gowan, 2010).

16Para Conrad,

a medicalização consiste em definir um problema em termos médicos, usando linguagem médica para descrever um problema, adotando um enquadramento [framework] médico para entender um problema, ou usando uma intervenção médica para o “tratar”. Isto é um processo sociocultural que pode ou não envolver a profissão médica, levar a formas médicas de controlo social ou de tratamento, ou ser o resultado de expansão intencional pela profissão médica. A medicalização ocorre quando um enquadramento [frame] ou definição médica foi aplicada para entender ou gerir um problema. (1992: 211)

17Portanto, trata‑se de um processo pelo qual determinado fenómeno passa a ser entendido e gerido de acordo com uma grelha de análise que provém do modelo médico. Se a profissão médica não tem forçosamente de estar envolvida no processo, a sua presença reforça a dominação da medicalização como forma de observar e atuar sobre o fenómeno. Três níveis distintos mas complementares de medicalização são identificáveis: i) um nível conceptual, pelo qual o vocabulário médico é mobilizado para enquadrar um fenómeno; ii) uma dimensão institucional, em que as organizações envolvidas usam uma abordagem médica para tratar um problema específico em que se especializam; iii) e uma dimensão interacional, em que a relação médico/paciente direta está presente e onde o primeiro define e trata (medicamente) um problema individual que pode ou não ser de origem social (e logo, na empiria, não ser uma patologia do sujeito‑paciente). Só neste terceiro nível encontramos a profissão médica sempre envolvida (ibidem.: 211).

18O envolvimento da profissão médica não é conditio sine qua non da medicalização de um fenómeno. Ao longo das últimas décadas, o modelo médico estendeu‑se a diversas dimensões da sociedade, passando várias profissões não diretamente ligadas à medicina a mobilizar um discurso medicalizante. A capacidade de definir “medicamente” comportamentos e pessoas – para Conrad (1992), o principal indicador de poder do modelo médico – está bem presente em várias investigações realizadas sobre o fenómeno dos sem‑abrigo, provenientes da psicologia, do serviço social, etc., que mobilizam grelhas médicas para abordar o problema, tendo como principal preocupação a identificação das patologias individuais de cada sem‑abrigo. O primeiro objetivo de tais investigações passa por encontrar – definir, produzir – a “doença mental” ou a dependência de álcool e/ou de drogas que impede um indivíduo sem‑abrigo concreto de sair da rua e de se “integrar” na sociedade domiciliada. Neste registo, a solução para a saída da rua (não para o fim do fenómeno dos sem‑abrigo, mas para a saída individual) é a reconversão pessoal do indivíduo de modo a adaptar‑se a uma sociedade que, podendo ser entendida como injusta, é, sobretudo, naturalizada (Blau, 1992; Lyon‑Callo, 2008; Gowan, 2010). A individualização das causas e soluções do fenómeno invisibiliza os efeitos estruturais que tornam certos sujeitos “sem‑abrigo”: o fenómeno dos sem‑abrigo passa a ser visto como “sintoma da doença mental grave e do abuso de substâncias de uma minoria e [como tendo] pouco que ver com as condições de trabalho e de habitação da maioria” (Gowan, 2010: 50). Como consequência do carácter dominante do modelo médico, é criada e homogeneizada a categoria dos “sem‑abrigo doentes mentais e desviantes”; uma categoria que se encontra “à parte do resto da sociedade” e cuja existência não provém da forma como esta está organizada mas sim dos fatores individuais que distinguem os sujeitos “sem‑abrigo” dos que se encontram “domiciliados” (Blau, 1992; Lyon‑Callo, 2008; Gowan, 2010).

19Rejeitando o modelo médico como modo de construir conhecimento sobre o fenómeno dos sem‑abrigo, convém ter em mente que

iniquidades sistémicas contribuem para a produção de muitos dos comportamentos que são comummente lidos como desordens patológicas entre pessoas sem abrigo permanente. Ler estes comportamentos como desordens individuais certamente desempenha um papel no silenciamento do trabalho contra condições sociais exploradoras e na limitação da nossa capacidade para trabalhar mais eficientemente contra as condições que esse trabalho documenta. (Lyon‑Callo, 2008: 52)

20Vários dos comportamentos de indivíduos sem‑abrigo que são tidos como indicadores de “patologias” são formas mais ou menos eficazes de lidar com a dureza da vida na rua. Todavia, “com a medicalização de problemas sociais, torna‑se senso comum perceber as estratégias adaptativas [coping strategies] das pessoas sem‑abrigo como sintomas e prova de doença mental” (ibidem: 53). Entre outras coisas, a “medicalização” de certos comportamentos torna os “sem‑abrigo” em “vítimas passivas” de patologias, negando‑lhes a sua capacidade de agir e refletir sobre o mundo e si mesmos, justificando‑se social e moralmente que eles sejam biopoliticamente geridos pelas instituições “assistencialistas” e repressivas.

21O modelo médico e o registo “(a)moralizante” são tipo ideais. Na praxis – mesmo na praxis da produção de conhecimento académico‑científico –, os dois modelos mesclam‑se, criando um arquétipo de “sem‑abrigo” que é, simultaneamente, “doente mental, drogado, alcoólico, preguiçoso, amoral e criminoso” que se impõe ensinar a “integrar‑se”. Na prática, o modelo médico não é axiologicamente neutro mas, pelo contrário, incorpora considerações morais, levando à complementaridade das práticas e discursos “repressivos” e “assistencialistas” (Feldman, 2006; Lyon‑Callo, 2008; Gowan, 2010). A tendência de investigação dominante, então, não se reduz ao modelo médico ideal‑típico mas refere‑se à individualização patológica em geral, quer esta ocorra segundo o registo da “doença mental”, quer ocorra segundo o registo do “desvio sociocultural”, quer ainda pela (mais habitual) complementaridade de ambos os registos.

22A individualização patológica conjuga‑se com a quantificação, muito contribuindo esta última para a primeira. Dado que, como foi visto na secção anterior, há mais “sem‑abrigo” medidos em fluxo do que em stock e que contabilizá‑los desta última forma restringe a população a um agregado de sujeitos que permanecem muito tempo na rua – e logo, que se pode supor estarem mais adaptados às suas condições de vida –, uma definição restrita que apoie uma quantificação em stock facilitará uma “patologização” do fenómeno dos sem‑abrigo (Wright e Rubin, 1998: 41‑46; O’Sullivan, 2008: 74). Esta facilitação da “patologização” decorre da ausência de visão longitudinal das medições em stock, o que pode levar ainda a que se confundam causas do fenómeno (leia‑se: motivos pelos quais os sujeitos chegam à rua) e efeitos da vida na rua, que, quando muito, podem constituir causas da persistência do fenómeno (leia‑se: motivos pelos quais os sujeitos permanecem na rua). Esta confusão pode levar a interpretar os problemas psicológicos e relativos ao consumo de álcool e drogas como causas do fenómeno quando, na realidade, podem ser derivados da situação de vida na rua e serem sim, portanto, fatores explicativos parciais para a permanência de certos indivíduos em situação de sem‑abrigo (Blau, 1992: 17; Phelan e Link apud O’Sullivan, 2008: 74). Há formas de produção estatística que distorcem mais o fenómeno dos sem‑abrigo do que outras, facilitando mais a individualização patológica, mas toda a produção estatística tem um efeito de distorção. Como afirma Blau, “a investigação em ciências sociais […] constantemente transforma características demográficas em causas do fenómeno dos sem‑abrigo” (1992: 17).

Uma política ontológica declarada e preocupada

23Como qualquer outro método, a quantificação e a individualização patológica produzem realidades específicas; cada um destes métodos constrói um fenómeno dos sem‑abrigo particular, mobilizando práticas, discursos, atores e materialidades específicos e fá‑lo estudando contextos espaçotemporais concretos. Como qualquer outro método, a quantificação e a individualização patológica tornam presentes partes do fenómeno dos sem‑abrigo, e fazem‑no à custa da invisibilização de outras partes (Law, 2004). Concebendo a questão em discussão deste modo, o problema da quantificação e da individualização patológica não é o de serem perspetivas erradas. O argumento deste texto procura ir para além do perspetivismo, considerando que a quantificação e a individualização patológica são métodos errados, incapazes de produzir realidades que deem conta dos enormes diferenciais de poder e fatores de dominação estrutural caracterizadores do fenómeno dos sem‑abrigo.

  • 8 Sobre o processo de produção de declarações na prática científica em geral, cf. Latour (1987) e Law (...)
  • 9 As declarações dos defensores deste regime de verdade não passam, porém, sem crítica e vários autor (...)

24Não estamos perante um problema de perspetiva pois, se estivéssemos, consideraríamos que há uma realidade essencialista do fenómeno dos sem‑abrigo que é passível de ser descoberta pelo correto uso de certas metodologias. Não é esse o caso. Este fenómeno, como qualquer outro, é produzido pela própria prática metodológica (Mol, 2002; Law, 2004). O problema da quantificação e da individualização patológica é o facto de, sendo tão seletivos nas realidades que produzem como qualquer outro método, não o assumirem. A realidade do fenómeno dos sem‑abrigo que produzem é feita existir à custa da anulação de realidades alternativas. Constitui‑se num regime de verdade (Foucault, 1991, 1994, 2006), numa representação particular das possibilidades de realidade do mundo. Um regime de verdade que é tanto discursivo quanto material – o discurso é em si mesmo materialidade, mas, avançando a reflexão de Foucault com base no pensamento de Law (2004), Mol (2002) e Latour (1987), um regime de verdade constituir‑se‑á igualmente de coisas, objetos, práticas físicas dos sujeitos. O regime de verdade constituído pela complementaridade da quantificação e da individualização patológica tem de ser desconstruído por, pelo seu carácter dominante, negar que outras realidades do fenómeno dos sem‑abrigo existam ou possam existir. As declarações que estes métodos fazem sobre o fenómeno ganham estatuto de (quase‑) exclusividade, tornando‑se aceites acriticamente pela comunicação social, pelos políticos, pelos cidadãos comuns, pelas partes da Academia que dominam a investigação sobre o tema. Novas declarações serão produzidas com base nelas, suportando‑se num processo em espiral que tem o efeito de esconder cada vez mais, à medida que avança, as escolhas que estes métodos realizam, em particular, as realidades do fenómeno que vão sendo tornadas, recorrentemente, invisíveis8 – as políticas públicas incapazes de garantir um nível de vida digno a quem vive na rua, a desregulação dos mercados habitacional e laboral, a capacidade de ação e reflexividade dos atores sem‑abrigo, as interações não oficiais em que estes se envolvem, a pluralidade de estratégias de sobrevivência que são forçados a desenvolver perante as falhas do Estado e do mercado, etc.9 Como Law (2004) e Latour (1987) defendem, uma parte fundamental do processo de produção de conhecimento – de produção de realidade – é a anulação retrospetiva de si mesmo. O seu contexto de produção é, em grande medida, negado pelo seu contexto de justificação (Feyerabend, 1993).

25Sendo a realidade do fenómeno dos sem‑abrigo produzida pelas práticas metodológicas que mobilizamos para o conhecer, então, a verdade sobre essa realidade é, também ela, produzida por essas práticas, e logo, não é um critério de validação do saber em que nos possamos ancorar (Foucault, 1991, 1994, 2006; Mol, 2002; Law, 2004). Só o poderia ser se a realidade do fenómeno dos sem‑abrigo fosse una, exterior às práticas de produção de saber, passiva, coerente consigo mesma, passível de ser descoberta pela mobilização de vários métodos. Se fosse este o caso, poderíamos defender que uma perspetiva sobre ela seria melhor do que outra e procurar o método adequado para aceder a essa realidade. Mas não nos encontramos numa situação semelhante. O fenómeno dos sem‑abrigo é caracterizado, sobretudo, pela sua fractalidade (Mol, 2002; Law, 2004). Ele é múltiplo – é as falhas do mercado habitacional e laboral, as falhas do Estado, as subjetividades e estratégias de sobrevivência de quem vive na rua, o conjunto de formas institucionais de ação disciplinares e “assistencialistas”, os discursos sobre ele, e todos os outros fatores “que podem ser discutidos ao falarmos sobre o tema. Mas é múltiplo sem chegar a ser plural, é mais do que um sem chegar a ser vários: todas as realidades que podem ser produzidas sobre o fenómeno – todos os diferentes fenómenos dos sem‑abrigo que podemos identificar, que podemos produzir – têm ligações entre si. Elas combinam‑se, coordenam‑se, cooperam de modos complexos, contribuindo para construir um fenómeno dos sem‑abrigo com uma aparente singularidade, e tal é feito reduzindo o que pode existir ao que é ativamente feito existir, tornando as realidades produzidas pela quantificação e pela individualização patológica numa única realidade, com estatuto de exclusividade, negando a legitimidade de existência às realidades alternativas que são tornadas invisíveis no processo.

  • 10 Cf. Law (2004) para uma discussão mais alargada sobre a relação entre “presença”, “ausência manifes (...)

26Estudar o fenómeno dos sem‑abrigo é inútil se não nos sentirmos indignados pelo facto de existirem pessoas a viver na rua, dominadas, a passar fome, frio, a serem tratadas sem respeito, sem dignidade. A verem a sua capacidade de ação negada quando são construídos (reificados) como “doentes mentais” ou ao verem‑se na posse de uma capacidade de ação puramente negativa quando são construídos (reificados) como “criminosos e preguiçosos”. É esta realidade de dominação e injustiça que deve ser estudada. Para o fazer, precisamos de métodos diferentes dos que ganharam estatuto de quase‑exclusividade. Precisamos de uma versão ampla de método – um method assemblage (Law, 2004) – que nos permita tornar presente a injustiça da vida na rua, os fatores de dominação institucionalmente produzidos, o sofrimento sentido nos corpos, a indignação, a panóplia de relações de poder que podemos observar nas interações em que os indivíduos sem‑abrigo estão envolvidos. Tal exercício deve ser feito de modo declarado, deve assumir uma preocupação por um mundo melhor, um desejo de que os enormes diferenciais de poder que desqualificam quem vive na rua sejam eliminados, e que o único modo de fazer isto é eliminar a existência de pessoas que vivem na rua. Precisamos de uma postura metodológica que posicione o investigador declaradamente no terreno, que dê conta da sua influência sobre a investigação e da influência da investigação sobre ele. Uma postura que assuma que o investigador considera que há realidades do fenómeno dos sem‑abrigo que interessa mais produzir do que outras, dado que nem todas podem estar presentes em simultâneo (Law, 2004). Mas, assim sendo, este compromisso assumido com a construção de uma realidade particular pela prática metodológica mobilizada implica também que as realidades que se opta por tornar ausentes sejam explicitadas. Não que todas elas devam ser explicitadas do mesmo modo – a multiplicidade tornaria tal propósito inalcançável – mas, no mínimo, devemos explicitar que estamos a produzir ausências no processo de investigação, que estamos conscientes de que o fazemos e que desejamos mesmo fazê‑lo – tornar presentes as dimensões estruturais do fenómeno, tornar ausentes de modo declarado as “doenças mentais” dos atores sem‑abrigo, tornar ausentes de modo implícito outras realidades.10

  • 11 Pelo menos, poderá vir a estar, dado que se reconhecem certas imprecisões “de somenos importância” (...)

27Se não é a busca da verdade mas a produção de realidade(s) que orienta a prática metodológica, então, a metodologia é um problema político por excelência. O método é um modo de produzir as realidades que nos interessam, enquanto sociedade, produzir. Torna‑se necessário, então, assumir esta dimensão do método, ao estudarmos o fenómeno dos sem‑abrigo ou qualquer outro. Investigar o mundo é um exercício de política ontológica (Mol, 2002; Law, 2004), de produção de realidades: “uma política que se prende com o modo como os problemas são enquadrados [framed], como se dá forma aos corpos, e como as vidas são puxadas e empurradas para uma forma ou outra” (Mol, 2002: viii). Necessário é assumir esta seleção e procurar desenvolver metodologias que permitam produzir realidades fluidas, complexas, por vezes, incoerentes, rejeitando a exclusividade a qualquer realidade particular, nomeadamente à que é atualmente dominante. A política ontológica é parte integrante de qualquer método: é por ela que a escolha das realidades tornadas presentes e ausentes é feita. Mas a quantificação e a individualização patológica são exercícios de uma política ontológica encoberta, que não assume – aliás, que rejeita – o seu carácter de política ontológica. Produzem conhecimento e produzem realidades mas, no mesmo processo, negam que o fazem. Escolhem a realidade que produzem, escolhendo ao mesmo tempo o conhecimento sobre ela que é tornado presente, mas negam que o fazem. Remetem as realidades que produzem para fora das suas próprias práticas metodológicas, rejeitando que as influenciam ao produzir conhecimento sobre elas. Deste modo, reduzem a discussão sobre o fenómeno dos sem‑abrigo a questões de perspetiva: defendem que a realidade é a mesma mas as perspetivas sobre ela são diferentes. Mas, se “a realidade é a mesma”, então, dado que a quantificação e a individualização patológica se apresentam como métodos aceites como “corretos”, a sua “perspetiva” sobre essa realidade exterior às práticas não pode deixar de estar certa.11 Se esta “perspetiva” é a “correta”, então, deverá ser também exclusiva, dado que as “perspetivas” alternativas não podem deixar de estar “erradas”. Esta negação com o intuito de suportar a dominação metodológica é insustentável, e o que é invisibilizado por estas presenças é demasiado importante para poder continuar ausente. A lógica é a de Feyerabend (1993): “vale tudo”, desde que seja justificado. Qualquer realidade que se produza é legítima, desde que o facto de a estarmos a produzir e o modo como o fazemos seja convenientemente explicitado. Mas, se é legítimo produzir todas as realidades, nem todas são desejáveis. É aqui que a política ontológica se torna particularmente relevante. Optar pela realidade que não esconde a dominação ou pela que responsabiliza quem vive na rua por viver na rua é substancialmente diferente e um investigador preocupado com a dignidade humana não pode ser conivente com a produção da segunda realidade.

  • 12 Cf. Law (2004), Latour, (1987) e Flyvbjerg (2011) sobre o carácter local e contextual de todo o con (...)

28Se a quantificação e a individualização patológica não são o(s) caminho(s) a seguir é, em grande medida, pelo carácter profundamente descontextualizado das afirmações que proferem. O conhecimento que produzem é relativo a um contexto – a uma realidade – particular, mas a parte do processo que leva à anulação da influência de si mesmo na produção da realidade estudada esconde o espaço‑tempo dessa mesma realidade. Torna aquilo que é conhecimento local (como todo o conhecimento é)12 em saber “universal”. Uma realidade produzida de uma forma específica num espaço‑tempo concreto, deste modo, torna‑se a realidade não só desse espaço‑tempo mas também de vários outros.

29Um dos principais problemas do regime de verdade dominante é este seu carácter “universal”. É, em grande medida, ao negar o seu provincianismo que a realidade que produz pode ser apresentada como singular e exterior. Combater esta postura só é possível se as investigações contextuais sobre o fenómeno dos sem‑abrigo explicitarem a sua contextualização. No modelo positivista de conhecimento, o universalismo é tido como objetivo primordial da informação produzida pelas pesquisas. Mas tal só pode ser alcançado pelo processo de obscurecimento das práticas de investigação, do qual é parte integrante a negação do contexto em que essas práticas ocorrem. Uma política ontológica assumida e preocupada só pode existir na medida em que é relativa a situações específicas. Estas não podem ser tornadas invisíveis; elas são uma parte fundamental da realidade que o método procura tornar presente.

  • 13 Desde Nels Anderson (1965; Anderson e Rauty 1998), a primeira referência “clássica” da investigação (...)
  • 14 As recentes etnografias de Gowan (2010) e Bourgois e Schonberg (2009), curiosamente, ambas realizad (...)
  • 15 É de referir o bom exemplo de pesquisa que nos é dado por Bourgois e Schonberg (2009) a este nível. (...)

30Esta postura de investigação sobre o fenómeno dos sem‑abrigo não se pode afirmar como “universal”. Ela não é “generalizável” no sentido positivista, que deve ser traduzido por “descontextualizada”. Antes, uma política ontológica preocupada e assumida deve funcionar através de uma praxiografia (Mol, 2002) de um contexto específico, uma etnografia das práticas na praxis de um espaço‑tempo particular.13 A preocupação com a injustiça derivada de diferenciais de poder grandes ao ponto de se constituírem em dominação só pode transformar‑se numa parte daquilo que produzimos como presente se o terreno da investigação for abordado intensivamente e de modo prolongado.14 As subjetividades dos atores, os meios que estes mobilizam para fazer face à dominação e sobreviver, os discursos que os sujeitos sem‑abrigo incorporam, readaptam, rearticulam, produzem e fazem circular, as relações em espaços fora do olhar público, enfim, uma parte substancial do conjunto de práticas que constituem o fenómeno não são observáveis quando as realidades que desejamos produzir não as contemplam. Quando o que buscamos são “grandes tendências gerais”, superficiais, do fenómeno ou a identificação (produção) de problemas em função de quadros clínicos preexistentes ou de representações dominantes sobre o carácter “amoral” dos “pobres imerecedores”. O fenómeno dos sem‑abrigo entendido como dominação necessita de abordar o que está para lá daquilo que é imediatamente visível quando abordamos a vida na rua. Quando as relações de poder injustas são o que interessa tornar presente, temos de olhar também para o que ocorre nos “bastidores” (Goffman, 1993) da vida social, nos hidden transcripts (Scott, 1985, 1990) dos atores dominados.15 Olhar para estas realidades não nos permite olhar para outras. Novamente, o importante é explicitar que é o poder‑em‑produção‑relacional que constitui a realidade que uma postura assumida e preocupada quer produzir, não como fim em si mesmo, mas considerando‑a como parte de uma política ontológica mais vasta. Como disse, todas as realidades são igualmente legítimas, mas nem todas são igualmente desejáveis. Tornar presente a realidade do poder‑em‑produção‑relacional no fenómeno dos sem‑abrigo é desejável na medida em que esta é percebida como injusta e indigna. O exercício político passa pelo combate dessa realidade. Mas só produzindo‑a como presente em toda a sua complexidade – o primeiro passo da política ontológica assumida e preocupada – é possível combatê‑la e procurar criar uma outra realidade, mais justa, sem pessoas a viver na rua – o segundo movimento político ontológico.

Uma conclusão…

31… é de rejeitar, dado que o processo é aberto, contínuo. A postura metodológica defendida não visa apresentar‑se como “o caminho” a seguir pela investigação mas sim constituir um caminho possível. Os pormenores de pesquisas contextuais só contextualmente podem ser abordados e resolvidos. Fornecer diretivas metodológicas “universais” para abordar terrenos específicos é um contrassenso e é contraproducente. É impeditivo da realização de boas investigações. Precisamos de regras, mas de regras contextuais, adaptadas à ocasião (Feyerabend, 1993; Law, 2004; Flyvbjerg, 2011). O que valida a partilha do conhecimento que produzimos não é o facto de mobilizarmos os mesmos procedimentos em espaços‑tempo diferentes mas a explicitação das diferentes formas de fazer aquilo que fazemos. É este o principal problema do regime de verdade dominante na investigação sobre o fenómeno dos sem‑abrigo. Ele produz demasiadas negações, reduz o campo do possível ao que existe, deixando de fazer sentido pensar num mundo melhor (diferente) do que aquele que existe, dado que este se torna no melhor (único) mundo possível. Ele nega o contexto da investigação pelas pretensões de “universalismo” e não dá conta de partes desse contexto devido à estandardização metodológica. Nega que produz realidade(s), que produz presenças e invisibilidades. Nega que seja possível produzir realidades alternativas, usando métodos alternativos. O regime de verdade dominante rejeita o seu carácter ontológico político. A única regra geral defensável é a da explicitação: “vale tudo”, mas temos de estar conscientes do que fazemos e dar conta do modo como o fazemos. Este será variável consoante o contexto investigado mas, no caso particular do fenómeno dos sem‑abrigo, não pode tornar invisível a injustiça e a dominação. Rejeitar a dominação metodológica do regime de verdade discutido é o primeiro passo para podemos abordar e combater a dominação praxiológica (que deve estar) presente no fenómeno dos sem‑abrigo.

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Notas

* Agradeço a Sílvia Portugal pela leitura atenta de várias versões deste texto e pelas suas sugestões. Todos os problemas que permaneçam são, porém, da minha inteira responsabilidade.

1 No sentido de enactment, que deve ser distinguido de construction. Ambos os conceitos remetem para a ideia de que os objetos e realidades estudadas são feitos existir pelas práticas metodológicas mobilizadas para os estudar, não havendo uma realidade exterior a essas práticas. Porém, o conceito de construction supõe que essas práticas metodológicas se estabilizam progressivamente, estabilizando também os objetos/realidades que estudam – produzem. Tendo em conta que a negação de que produzem as realidades estudadas é parte integrante das próprias práticas que as produzem, o conceito de construction baseia‑se na ideia de que as realidades estudadas e as práticas que as estudam podem ganhar uma aceitação suficientemente generalizada que leva a que uma das múltiplas práticas e uma das múltiplas realidades possíveis ganhe uma aparência de exclusividade. Não se põe de parte a ideia de que estas práticas podem ser alteradas, mudando a realidade feita existir, mas acentuam‑se os custos que uma tal alteração acarretaria. O conceito de enactment rejeita esta possibilidade de estabilização única. Ele admite que possa haver estabilizações, mas estas serão sempre múltiplas, dependendo das práticas diversificadas que são mobilizadas em cada espaço‑tempo. Deste modo, o enactment tem uma dimensão performativa: as realidades que as práticas tornam presentes só se mantêm presentes enquanto as práticas são executadas. Sobre a noção de enactment, cf. Mol (2002) e Law (2004).

2 Ao longo do texto, será mobilizada a distinção epistemológica basilar entre perspetivismo e construtivismo, inserindo na discussão a ideia de política ontológica, entendida como um tipo particular de construtivismo. Em linhas gerais, por perspetivismo entendo uma postura metodológica que concebe a realidade estudada como algo exterior ao processo metodológico de fornecimento de significado ao mundo. Nesta linha, a metodologia não é um assunto de “produção” mas sim de “descoberta” de uma realidade, sendo as diferentes formas de a descrever e analisar condicionadas por diferentes posições que os sujeitos ocupam no mundo, levando a “visões” distintas sobre uma mesma realidade que é, assim, abordada a partir de diferentes pontos de entrada. Deste modo, a possibilidade de “acordo entre perspetivas”, no sentido de abordarmos a realidade correta, é algo que o perspetivismo contempla. O construtivismo, pelo contrário, rejeita a unicidade do real, afirmando que os próprios posicionamentos diferenciados dos sujeitos geram diferentes realidades. Não se tratando de uma postura solipsista, tal construção da realidade é um exercício coletivo, levado a cabo por redes relacionais e não por indivíduos isolados (nenhum elemento isolado da rede tem total controlo sobre a realidade que eles todos produzem), de onde resultam diferentes fenómenos que, discursivamente, são, muitas vezes, designados pelo mesmo nome. A política ontológica surge como uma forma de clarificar certas premissas do construtivismo. Em primeiro lugar, esta acentua este carácter relacional da produção de realidades, combatendo certas linhas construtivistas que, tomando a interação como pressuposto tácito de partida, não o explicitam, gerando a confusão entre “construtivismo” e “solipsismo”: tomando a política ontológica como centro do procedimento metodológico, somos forçados a aceitar que existem realidades fora das perceções dos indivíduos; mas não existem realidades fora dos significados que são construídos por uma rede relacional. Adicionalmente, uma metodologia que explicite o seu carácter político ontológico deixa clara uma dimensão possível de intencionalidade na produção de realidades: se estas são performatizadas pelos indivíduos interacionalmente ligados, então, é plausível que estes, coletivamente, desenvolvam esforços no sentido de as performatizar num sentido política ou moralmente desejável.

3 Torna‑se essencial mobilizar uma conceção ampla de método. Fazendo‑o, fica claro que qualquer postura metodológica tem uma dimensão política. As escolhas metodológicas que mobilizamos estão longe de se reduzir a opções entre técnicas de produção de informação; muito menos são elas redutíveis a uma tomada de posição na dicotomia “quantitativo/qualitativo”. Tomando como base a noção de política ontológica, um posicionamento moral preocupado com o bem‑estar e a dignidade dos atores cujas vidas são estudadas obriga o investigador a contribuir para a melhoria das suas condições de vida pelo trabalho que realiza, devendo este permitir produzir um mundo mais justo, nomeadamente, sendo capaz de revelar as desigualdades relacionais que reduzem as possibilidades de vida de certos indivíduos. Entendo por métodos “errados” todos aqueles que, pelo contrário, contribuam de algum modo para a reprodução de um status quo da distribuição de poder que continue a prejudicar os atores já hoje prejudicados nos fenómenos estudados.

4 As discussões sobre as definições de “sem‑abrigo” são diversas. Brousse (2005), Jacobs, Kemeny e Manzi (1999) e Damon (2008: 2‑7, 129‑148) consideram necessário definir uma população, apesar de identificarem vários problemas no processo. As posturas qualitativas de Hopper (1997), Rullac (2012), Zeneidi‑Henry (2002: 16‑50) e, em particular, Gaboriau (2004) e Gaboriau e Terrolle (2009) parecem‑me mais interessantes, sendo caracterizadas por rejeições da definição, que consideram desnecessária a uma conceção do fenómeno dos sem‑abrigo que acentue as suas ligações processuais a outras situações estruturalmente pobres e dominadas.

5 Acerca das questões relativas aos modos de contabilização do agregado “sem‑abrigo”, cf. Brousse (2005), para uma visão que, não deixando de identificar os seus problemas, defende a utilidade da quantificação. Cf. Gaboriau (2004) para uma rejeição veemente da postura quantitativa. Entre a rejeição total da quantificação (Gaboriau) e a busca de soluções para problemas de contabilização (Brousse), encontramos Damon (2008: 129‑148), mais próximo da segunda postura do que da primeira. Hopper (1997) e Zeneidi‑Henry (2002: 38‑42) afastam‑se mais de Brousse e defendem metodologias qualitativas mas não tecem críticas tão veementes à quantificação quanto Gaboriau.

6 Todas as citações em língua que não o português foram por mim traduzidas.

7 A título exemplificativo, é com esta reduzida segurança que devemos olhar para os dados que nos dizem que existiam, em Portugal, em 2007‑2008, 1377 indivíduos em situação de sem‑abrigo em sentido restrito (dados que não são “estatisticamente representativos” do país, tendo sido recolhidos em Lisboa, em 2007, e em Coimbra e na Amadora, em 2008) (Edgar, 2009: 74).

8 Sobre o processo de produção de declarações na prática científica em geral, cf. Latour (1987) e Law (2004).

9 As declarações dos defensores deste regime de verdade não passam, porém, sem crítica e vários autores, ainda que minoritários na Academia, contestam‑nas. Os trabalhos de Gaboriau e Terrolle (Gaboriau, 2004; Gaboriau e Terrolle, 2007, 2009), Lyon‑Callo (2008), Gowan (2010), Hopper (1997, 2003) ou Bourgois e Schonberg (2009) são precisamente exercícios de desconstrução da quantificação e “patologização” individualizante através da visibilização das dimensões estruturais e interacionais do fenómeno dos sem‑abrigo que o regime de verdade dominante invisibiliza. Estes autores, de formas distintas, mobilizam abordagens etnográficas para produzir fenómenos dos sem‑abrigo alternativos ao dominante, acentuando a dominação e a injustiça presentes na vida dos atores sem‑abrigo. Apesar da heterogeneidade destes trabalhos, é possível encontrar neles um posicionamento comum sobre o fenómeno dos sem‑abrigo, posição essa em que me revejo.

10 Cf. Law (2004) para uma discussão mais alargada sobre a relação entre “presença”, “ausência manifesta” e “ausência como alteridade” (implícita).

11 Pelo menos, poderá vir a estar, dado que se reconhecem certas imprecisões “de somenos importância” na aplicação prática do método.

12 Cf. Law (2004), Latour, (1987) e Flyvbjerg (2011) sobre o carácter local e contextual de todo o conhecimento produzido.

13 Desde Nels Anderson (1965; Anderson e Rauty 1998), a primeira referência “clássica” da investigação sobre o fenómeno dos sem‑abrigo na Academia, é claro que este tem de ser alvo de estudo etnográfico contextual e prolongado.

14 As recentes etnografias de Gowan (2010) e Bourgois e Schonberg (2009), curiosamente, ambas realizadas em São Francisco, oferecem‑nos excelentes exemplos da possibilidade de trabalhar o fenómeno dos sem‑abrigo de formas que criticam o regime de verdade dominante, propondo a construção de realidades alternativas para a vida na rua, enfatizando os enormes diferenciais de poder e injustiças estruturais e interacionais presentes na vida dos atores sem‑abrigo. Sendo possível discordar das posições particulares em que os autores se colocam, ambos os trabalhos são exemplares não só pelo profundo conhecimento que revelam das realidades estudadas como pelas suas posições comprometidas com o combate dessa mesma dominação e injustiça e pelo facto de assumirem explicitamente os posicionamentos dos autores no terreno.

15 É de referir o bom exemplo de pesquisa que nos é dado por Bourgois e Schonberg (2009) a este nível. A sua fotoetnografia sobre os fenómenos dos sem‑abrigo toxicodependentes em São Francisco é um interessante exercício de estudo do que ocorre precisamente nesses espaços sociais de difícil acesso para os investigadores.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

João Aldeia, «Investigar o fenómeno dos sem‑abrigo. Em defesa de uma política ontológica declarada e preocupada»Revista Crítica de Ciências Sociais, 97 | 2012, 133-154.

Referência eletrónica

João Aldeia, «Investigar o fenómeno dos sem‑abrigo. Em defesa de uma política ontológica declarada e preocupada»Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 97 | 2012, publicado a 19 abril 2013, consultado a 29 março 2024. URL: http://journals.openedition.org/rccs/4964; DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.4964

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Autor

João Aldeia

Doutorando em sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), desenvolve atualmente uma tese acerca das estratégias de sobrevivência mobilizadas por atores sem‑abrigo. É licenciado e mestre em sociologia pela FEUC.
alvesaldeia@gmail.com

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